sexta-feira, 17 de agosto de 2007


APRESENTAÇÃO

Que cinema se fez em Trás-os-Montes e que Trás-os-Montes se fez nesse cinema?
Estes são os dois termos de uma mesma questão e as duas faces de uma mesma imagem, sem frente nem avesso. Responder à pergunta é ler a imagem cinematográfica à transparência da sua construção e à contra-luz do seu devir histórico, à vista de um confronto entre duas representações: uma que se mostra, a outra que se vê. É nessa descoincidência radical, em que se formam e desenvolvem todas as imagens, que é possível perceber a realidade.
Sendo muitos os filmes que têm por objecto ou pano de fundo a região transmontana e acreditando que a restituição dessas imagens, na maioria das vezes tão próximas quanto desconhecidas, ao contexto onde foram realizadas pode contribuir para uma redefinição dos lugares e das representações, A Reposição é um seminário aberto que pretende dar a ver e a discutir, in loco, uma selecção dos diferentes olhares que o cinema português dirigiu a Trás-os-Montes.

Em resposta a uma grande diversidade de propósitos (éticos, estéticos, políticos, sociológicos) e de pontos de vista (ficcionais, documentais ou combinado os dois registos), a multiplicidade de abordagens cinematográficas de Trás-os-Montes unifica-se em torno de uma gama pouco discrepante de temáticas e de concepções prévias. Reiteradas com frequência pelos cineastas, que encontraram na região e nos seus traços específicos elementos privilegiados para falar do país, ideias como o isolamento, o afastamento relativamente à capital e aos centros urbanos do litoral, associadas ao dramatismo da paisagem, à negação de todos os indícios da modernidade e à prevalência de modelos de organização social e de tradições ancestrais, contribuíram para forjar uma imagem pitoresca e pouco realista da região transmontana, convertida em lugar mítico, fora do espaço, do tempo e da história, pronto a acolher todo o tipo de projecções. Deste modo, enquanto alguns cineastas encontram em Trás-os-Montes o cenário ideal para, de modo fantasioso, filmar lendas e contos tradicionais (convertidos, na maioria das vezes, em comentário político), outros, desenvolvendo aproximações pretensamente mais objectivas, concordantes com os princípios teóricos da “antropologia visual”, vêem na prevalência de práticas comunitárias nalgumas aldeias, o molde e a justificação de um “comunismo natural”. Servindo as mais variadas perspectivas e discursos, identificada como território “virgem” e “original” – figura acabada de uma matriz cultural –, a região de Trás-os-Montes, torna-se, a um tempo, palco de algumas das mais radicais experiências cinematográficas do Novo Cinema Português e contraponto fundamental para repensar as assimetrias económicas entre o Norte e o Sul, a falência da reforma agrária e a crescente desertificação do interior do país.
Por isso, sendo certo que a paisagem natural e humana de Trás-os-Montes serve de pano de fundo a algumas das obras fundamentais da história do cinema português, A Reposição pretende proporcionar uma revisão crítica do cinema “transmontano” através do confronto de Trás-os-Montes com a sua imagem cinematográfica. Trata-se, pois, de reconduzir as imagens à sua origem e de levar o cinema onde este raramente chega.

A mostra terá lugar em plena região transmontana, na Casa da Cultura de Vimioso (Distrito de Bragança), de 30 de Agosto a 2 de Setembro.
Pela diversidade de abordagens cinematográficas de Trás-os-Montes, pelo confronto desses filmes com os locais onde foram realizados e contando com a presença de alguns dos realizadores, esperamos que A Reposição possa promover um espaço de abertura, de descoberta, de troca e de debate.

Por altura da mostra será ainda editado um livro com textos de reflexão sobre o tema e informação relativa aos filmes programados.

A entrada é gratuita.

O seminário está aberto a todas as participações.


Alojamento gratuito
A Câmara Municipal de Vimioso acolhe todos os participantes disponibilizando-lhes, para “acampar” gratuitamente, as instalações do recém-inaugurado Pavilhão Multiusos (espaço amplo com balneários e água quente).



Para outras informações:

António Preto

antónio.m.preto@gmail.com

O CINEMA EM TRÁS-OS-MONTES

Partindo do princípio que os montes não têm frente nem avesso, é necessário questionar os sentidos que se escondem por detrás da denominação Trás-os-Montes. O primeiro problema que se coloca, admitindo que a designação adjudica aos montes a função de fronteira, é a de saber a partir de que vertente desses montes se atribuiu o nome ao lugar. Se considerarmos que foi o litoral que assim o apelidou, a imagem que se intui é a de uma província remota. Se, pelo contrário, acreditar-mos que o nome foi imposto pela própria região, o que se descobre, do outro lado dos montes, é um país distante. Dúvidas etimológicas à parte, e sendo Trás-os-Montes não centro, mas província, parece certo que o título, vindo de lá do Marão, serviria sobretudo para justificar o sistemático esquecimento a que o território foi sujeito, afastado que sempre esteve tanto do mar como da Europa, à margem da história e dos desígnios nacionais.
O reino maravilhoso de Torga, situado no cimo do país “como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecíveis”, daria porém, nesse seu excelso afastamento, ingredientes para as mais variadas visões. Porque nem sempre a galinha que cantou primeiro é a dona do ovo, a literatura, a etnologia e, mais tarde, o cinema votar-se-iam à conversão dessa irredutível lonjura em recuo analítico para falar sobre a realidade política do país. O distanciamento assim cultivado, não raras vezes às custas da mais exaltada rendição, na linha de Torga, aos encantos telúricos de Trás-os-Montes, decorrerá, com frequência, mais de uma vontade de exteriorização do que de uma genuína curiosidade; revelará mais desse olhar exterior do que do seu objecto; dirá mais sobre o país do que sobre a região, pintada, na maioria dos casos, como um território bidimensional, uniforme, virgem e não poluído, pronto a acolher todo o tipo de projecções.
Se algum cinema se fez na região transmontana, sobretudo a partir da segunda metade da década de 70, é indispensável, para compreender a qualidade e as particularidades desse cinema, pensar tanto Trás-os-Montes no cinema como o cinema em Trás-os-Montes. É pois necessário averiguar que imagens esse cinema produziu, que razões motivaram o seu direccionamento para região e que relações foi, com ela, sendo capaz de estabelecer. Dito de outro modo, se o cinema fabricou uma representação especificamente cinematográfica de Trás-os-Montes, importa apurar a especificidade e o alcance dessa representação. Porque se é próprio do cinema transfigurar aquilo que filma, falta saber se o que é filmado determina alguma transformação no cinema.
Por não constituir um corpus suficientemente coeso (dotado de outras peculiaridades, além da comunidade do espaço de filmagem), por não ser, salvo raríssimas excepções, um cinema indígena (isto é, realizado por pessoas originárias e residentes na região), e por esse cinema nem sempre se enraizar verdadeiramente no contexto local (preferindo não se posicionar face à inexistência de uma tradição cinéfila na região, agravada pela falta de estruturas organizadas de distribuição e exibição), o cinema produzido em Trás-os-Montes não funda uma cinematografia.
Trata-se, por isso, de um cinema, se permitido é propor essa designação unitária, que engloba uma grande diversidade de objectos, com propósitos, concepções metodológicas, modos de interagir com o tecido social e graus de compromisso distintos. Muitas das vezes (e nos piores dos casos), um cinema expedicionário e sem retorno, pronto a atravessar os montes em busca de cenários e figurantes, mais interessado em panos de fundo do que na realidade, pouco disposto a desfazer o exotismo recíproco, da câmara para com o que é filmado e vice-versa, e a devolver in loco um confronto com as imagens: circunstâncias todas elas consonantes com a hegemonia das políticas centralistas e com o desinteresse generalizado da administração local não só pelo cinema, mas por todas as práticas culturais vindas de fora. Só assim se entende que, sendo muitos destes filmes peças incontornáveis da história do cinema português, sejam, ao mesmo tempo, outras tantas páginas em branco da história cultural da região transmontana.
Enquanto alguns realizadores se dirigem, pelas mais variadas razões, para Trás-os-Montes à procura de um território mítico, genuinamente pré-moderno, ignorando as sedimentações do tempo histórico e ocultando todos os indícios de contemporaneidade para, no seu lugar, fazer sobressair uma vernaculidade fantasiosa, outros, empenhar-se-ão em lançar sobre a região olhares mais aprofundados, procurando, com diferentes ambições, desmontar a mitologia. Conjugando perspectivas mais próximas de uma óptica arqueológica – fundamentadas numa atenção particular à espessura da paisagem –, de uma vocação etnológica – atidas à inquirição da solidariedade entre práticas agrárias, rituais, representações e estruturas sociais –, ou de uma abordagem sociológica – votadas à compreensão e contextualização dos fenómenos sociais na sua interdependência e globalidade –, o cinema fará emergir temas e questões que se repetem de modo recorrente e que servem, não só para caracterizar a região transmontana, como também a amplitude, as limitações e a pregnância do olhar que o cinema foi dirigindo a Trás-os-Montes.
Ao firmar a convicção de que a paisagem pode ser lida, Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro, e Sabores, de Regina Guimarães e Saguenail, são os melhores exemplos de um cinema que se constrói a partir da interrogação sobre os meios de que dispõe para, a um tempo, figurar e ler a paisagem no seu devir e na sua relação com o humano. Sendo sabido que o cinema propõe uma decifração documental do real e não um real decifrado, a demanda de interpretar a geomorfologia à luz do presente, conduzirá, tanto os primeiros cineastas como os segundos, a pensar as transformações da paisagem em estreita relação com as remodelações económicas e sociais ocorridas durante o século XX. Embora recorrendo a estratégias cinematográficas distintas – António Reis e Margarida Cordeiro, à criação de situações ficcionais; Regina Guimarães e Saguenail, à recolha de depoimentos e de imagens documentais –, os dois filmes atribuem, com trinta anos de distância, a modelação da paisagem transmontana ao mesmo tipo de factores naturais e humanos. Se os rios são, por excelência, os elementos estruturantes do espaço geográfico, tanto ao nível paisagístico como administrativo, a erosão populacional, por um lado, e a mecanização da agricultura, por outro, foram, nos últimos cem anos, os principais agentes no redesenhar do território: como é referido em Sabores, a paisagem transmontana de hoje é recente. Por isso, ao voltar-se para Trás-os-Montes à procura de um ambiente imutável e tradicional que confirmasse as ideias estereotipadas de uma longínqua ancestralidade – não é por acaso que todos os filmes passam ao lado dos núcleos urbanos e evitam as “casas de emigrante” –, o cinema não conseguiria, porém, escapar à modernidade da paisagem.
Em permanente reconfiguração histórica, mas também sazonal, a paisagem parece, contudo, perpetuar uma matriz invariável que, inscrita nessa eterna metamorfose, se lê como repetição e antiguidade. É essa regularidade que tanto em Trás-os-Montes como em Sabores servirá de indicador para, com base nas imagens, descobrir e analisar a circularidade em que se conformam paisagem e práticas humanas e, desse modo, pensar o cultural e o natural como termos de um mesmo processo de permanente reconversão. Privilegiando uma observação do real através da imagem – proposição que faria surgir em Portugal alguns dos primeiros exemplos da versão cinematográfica da antropologia visual – o cinema dedicaria um interesse especial a todo o tipo de representações (objectos, rituais, contos, cerimónias) por aí se presentificarem memória e regulamentação social, numa relação de síntese com a história das traduções humanas da paisagem. Para aceder à paisagem em toda a sua complexidade não bastaria escolher um ponto de vista e apontar as objectivas aos montes: o enquadramento precisa de ser enformado pelos referentes culturais. Se a paisagem pode ser lida, o cinema não contemplativo depressa compreendeu que só através das representações poderia aceder ao seu significado.
Filmes como Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira, Máscaras, de Noémia Delgado e Covas do Douro, de Tiago Afonso, procurarão descodificar e simultaneamente investir de sentido os ritmos da paisagem em confronto com os rituais colectivos que aí se realizam. Em Acto da Primavera, a reflexão paisagística incide sobre a importância matricial dos ciclos naturais na sua transposição para a narrativa religiosa (fazendo assim coincidir as estações do ano com as ideias bíblicas da morte e do renascimento); em Máscaras, a contextualização sócio-económica dos rituais que, em Trás-os-Montes, incorporam mascarados andará a par da integração dessas figuras na paisagem; em Covas do Douro, por seu turno, a paisagem, moldada à imagem do humano, deixará de ser arquétipo ou espaço de inscrição para passar a ser produto simbólico do trabalho.
Realizada em estrita comunhão com a paisagem, uma representação popular do «Auto da Paixão» serve a Oliveira para discorrer sobre a forma como o teatro e, de um modo diferente, o cinema estabelecem e interpelam o espaço cénico e o integram na dramaturgia. Se, instituindo uma conformidade de espaço e representação, o teatro tem a capacidade de controverter a paisagem, colocando-a ao serviço das exigências narrativas, o cinema, dispondo de uma aptidão documental e de uma maior elasticidade focal, consegue, simultaneamente, dar conta da construção teatral e da transfiguração do espaço. Instaurando uma mise en abîme entre diferentes níveis de representação, teatrais e cinematográficos, Acto da Primavera faz participar a paisagem na alegoria cristã da ressurreição, ao mesmo tempo que figura, num travelling, a transição do espaço real (Trás-os-Montes) para o espaço ficcional (a Samaria). Noutros moldes e com outras implicações, o estratagema seria repetido por João César Monteiro quando, em Os Dois Soldados, converte, pelo enquadramento, a paisagem de Trás-os-Montes em savana africana, ou, em Silvestre, a desterritorializa, imobilizada em grandes impressões fotográficas, para, em estúdio, recriar o ambiente intelectualizado de um conto tradicional. Paisagem-representação que será diferentemente tratada por Tiago Afonso, dissociando, pela montagem, as imagens da sua dimensão descritiva para concentrar num mesmo plano conotativo as vinhas do Douro, o pisar das uvas e os rostos dos trabalhadores; ou por Ana Miranda, em Pelo Buraco da Chave, onde a paisagem como separador pontua as fases do trabalho de uma tecedeira, salientando a sua reclusão.
Assumindo o encargo de decifrar a paisagem, o cinema viria a demonstrar que não há leitura sem reescrita. Sem precisarem de se perder nos abismos da subjectividade, alguns dos cineastas que operaram em Trás-os-Montes, muito particularmente o casal Reis/Cordeiro, perceberam que, apesar de implicar um corte e uma redução ao enquadramento, toda a representação da paisagem redobra, pela contingência da reprodução e pela conversão em discurso, a sua indomável multiplicidade. Por isso, o facto de uma paisagem no cinema não ser nunca apenas uma paisagem, coloca alguns problemas às abordagens que se pretendem mais objectivas.
Sendo certo que o cinema não pode esconder-se por detrás de uma suposta transparência da imagem para alcançar a neutralidade do simples testemunho etnográfico, ignorando a força compelativa da câmara e recusando a dimensão interpretativa que a mera fixação de um ponto de vista impõe, os cineastas de vocação antropológica assumiriam posturas bastante divergentes quanto à idoneidade e isenção da mediação cinematográfica no que toca à transcrição do real. Interessados na prevalência do comunitarismo em zonas remotas de Trás-os-Montes, autores como António Campos e Ricardo Costa focalizar-se-iam em certas aldeias para, através da sua realidade específica, reflectir sobre diferentes modelos de organização económico-social e pensar as assimetrias entre o litoral e o interior do país. Falamos de Rio de Onor, de António Campos, e Longe é a Cidade, de Ricardo Costa, dão, respectivamente, conta do quotidiano e dos problemas relatados pelos habitantes de Rio de Onor e da Moimenta, aprofundando e tentando compreender, numa escala global, o isolamento, a autonomização e a extinção anunciada dessas micro-realidades. Para isso, e patenteando (ou ocultando), de modos diferentes, quer as ilações ideológicas e discursos autorais, quer a objectiva interferência da câmara nas comunidades retratadas, as abordagens de António Campos e de Ricardo Costa desenvolver-se-ão num ténue equilíbrio entre a aproximação e a diferenciação do comunitarismo e do comunismo, ora acentuando, pelo discurso directo e individuação dos habitantes, o carácter personalista que distingue o primeiro do segundo, ora querendo destacar, pela organização dos meios de produção e dos regimes de propriedade, aquilo que os aproxima. Enquanto em Falamos de Rio de Onor o cinema está ao serviço da desconstrução dos mecanismos através dos quais se legitimam e sustentam mutuamente os diferentes poderes (político, religioso e científico) na manutenção de uma determinada ideia de comunitarismo e na sua recondução a uma função reguladora da ordem social, em Longe é a Cidade constatam-se, com algum desgosto, as contradições e remodelações dos costumes comunitários, nem sempre coincidentes com o que se espera encontrar. Num caso como no outro, o cinema (esse consumado visitante estrangeiro) fica à espera que os seus interlocutores deixem de se sentir na obrigação de lhe responder com a tipicidade que ele parece procurar. Pretende, desse modo, fazer aparecer uma verdade que, só podendo ser vista à distância, venha juntar-se a essa outra verdade que obriga o cinema a ser tão exterior quanto participante no registo daquilo que se lhe apresenta como realidade. É a fixação desse ponto de vista exterior (cúmplice, mas afastado) que permite, em Margens, de Pedro Sena Nunes, mostrar e tornar evidentes os sucessivos equívocos em que se constroem as relações dos habitantes da aldeia de Chelas com as administrações local e central.
Noutros filmes, menos condicionados por preocupações documentais, a realidade transmontana serve de inspiração e pano de fundo aos mais variados argumentos que, pese embora a sua multiplicidade, recorrem frequentemente aos mesmos temas e estratégias de cruzamento da história local com a história nacional. As difíceis condições de vida, a Guerra Colonial, as partidas e os regressos da emigração e a asfixia social são assim algumas das questões que alimentam as histórias do cinema de ficção realizado em Trás-os-Montes. Terra Fria, de António Campos, relata a miséria de um casal dos anos 40, residente na zona de Montalegre, para pensar os motivos da emigração e da despossessão que está na base de todas as formas de exploração. A Sombra dos Abutres, de Leonel Vieira, conta a história de um mineiro empenhado na luta laboral e, por isso, perseguido pela PIDE, para quem a fuga de Portugal é a única maneira de escapar à repressão do regime salazarista. Em Pedro Só, de Alfredo Tropa, a vida errática de um vagabundo serve para discorrer sobre alguns dos factores de coesão social (a família, a religião, o trabalho) em que se sustenta o Estado Novo. Matar Saudades, de Fernando Lopes, usa o regresso de um emigrante à aldeia natal para pensar as causas e as consequências dos diferentes tipos de migrações que marcaram o século XX português e ainda as modificações ocorridas no país ao longo dos dez anos que se seguiram ao 25 de Abril.
Profundamente diversos, quer em termos estéticos, quer no que se refere às ambições políticas e ao nível de comprometimento com a realidade, estes filmes convergem numa mesma reflexão acerca do salazarismo e da passagem do antigo regime à democracia, situando a acção em Trás-os-Montes; não para aí se deterem, em profundidade, nas características particulares da região, mas para com ela significarem todo o interior do país. Província mais afastada de Lisboa, Trás-os-Montes torna-se assim sinónimo de pobreza, arcaísmo, isolamento, desertificação e demais condicionalismos sócio-económicos que definem uma boa parte do país rural, tido pelo cinema para figurar o “país real”.
No sentido oposto à orientação realista destes filmes, empenhados em retratar e questionar a paisagem social com base em dados objectivos e a partir de histórias verosímeis (estabelecendo, nessa medida, critérios de coerência histórica e narrativa, conseguidos, muitas vezes, à custa da secundarização das contingências formais), cineastas como João César Monteiro ou António Reis e Margarida Cordeiro desenvolverão abordagens menos reguladas por esse tipo de parâmetros mas, nem por isso, menos interessadas nas problemáticas sociais. Nestes autores, o pensamento sobre a realidade parece não poder separar-se do pensamento sobre as formas: a pretensão de o cinema divisar o real (consubstancial que este é ao discurso) tem de ser directamente proporcional à radicalização da linguagem cinematográfica e não apenas decorrente de uma concentração romanesca de acções individualizadas ou do estreitamento numa minúcia descritiva.
Com diferenças fundamentais, éticas e estéticas, o olhar que César Monteiro e o casal Reis/Cordeiro dirigem a Trás-os-Montes assenta, invariavelmente, na recontextualização e metaforização de elementos etnográficos e paisagísticos, confrontados com textos das mais variadas proveniências e com situações ficcionais, tendo sempre em vista um alargamento do horizonte de referência e uma amplificação das possibilidades significativas. Considerando que texto e imagem se potenciam mutuamente e que o discurso cinematográfico, produto de dois movimentos simétricos (a dilatação das potencialidades evocativas através da contracção na imagem justa), não deve submeter-se aos padrões da antropologia, do romance ou da reportagem, estes cineastas procurarão entender e representar Trás-os-Montes por interpostas vias, mas com os meios específicos do cinema.
Na senda da reflexão acerca das venturas e desventuras da portugalidade, aspecto que caracteriza e unifica toda a obra de João César Monteiro como um longo comentário político centrado na vivência da nacionalidade, os quatro filmes em que o autor versa sobre Trás-os-Montes, realizados no período subsequente ao 25 de Abril de 1974, são quatro modos distintos e complementares de fazer um balanço velado da Revolução, dos seus resultados e das promessas da democracia. Enquanto Veredas e A Mãe focam as assimetrias entre o Norte e o Sul do país (acentuadas pela falência da reforma agrária) e Os Dois Soldados pensa o fim da Guerra Colonial (com o regresso dos soldados e a passagem do pós-colonialismo ao neo-colonialismo), em Silvestre observa-se o fim das tensões ideológicas entre capitalismo e comunismo, sob o manto reconciliador da integração de Portugal na CEE. Cruzando contos tradicionais, excertos de Ésquilo, textos escritos em parceria com Maria Velho da Costa e relatos populares com uma representação idealizada da paisagem e das gentes transmontanas, os filmes de César Monteiro forjam um universo fantasioso, de pendor surrealista, em que a mais extravagante das histórias é passível de uma leitura política.
Revelando outro tipo de preocupações, mais afectas à interrogação filosófica do que à crítica, António Reis e Margarida Cordeiro fazem convergir num mesmo plano cinematográfico análise materialista e extrapolação metafísica. Os três filmes realizados em parceria por estes autores, todos eles rodados na região de Trás-os-Montes, preconizam um cinema intelectualista e não narrativo que, propondo uma revisão das concepções de realismo, do estatuto da representação e das propriedades plásticas e sígnicas da imagem-codificação, nega a aproximação objectiva à realidade em favor da objectividade das ideias. A um tempo suporte e objecto de uma mediação conceptual, a paisagem transmontana – compreendida em toda a sua magnitude física, histórica e cultural – é, no cinema de Reis e Cordeiro, matéria e molde de um sistema de pensamento e de uma estruturação pela linguagem. Num crescendo de complexidade, Trás-os-Montes, Ana e Rosa de Areia conjugam um avolumar de referências literárias com uma progressiva depuração diegética. A colisão da palavra e da imagem responde assim a uma redução essencialista que, ao procurar fazer coincidir as leis do universo e as leis do cinema, procura, afinal, os princípios de uma verdade poética.
Concluída a revisão sumária dos filmes a apresentar em A Reposição, constata-se que aquém e além das singularidades autorais, a pluralidade de abordagens cinematográficas da região transmontana contrasta com uma certa uniformidade de motivos. Com efeito, longe de multiplicar os pontos de vista sobre Trás-os-Montes, procurando ventilar estereótipos e produzir representações contrárias ao imaginário corrente, muitas são as vezes em que, buscando o que já conhecem, os cineastas se rendem a imagens prontas a consumir. Não será, por isso, de estranhar que, pelas mais variadas razões e circunstâncias, em muitos dos filmes se repitam as panorâmicas sobre os montes, se escolham as mesmas paisagens com os mesmíssimos enquadramentos, se privilegiem as mesmas aldeias, se registem os mesmos rituais, se filmem as mesmas pessoas, objectos e situações, de tal modo que se torna possível traçar um roteiro temático e geográfico da passagem do cinema por Trás-os-Montes.
Mas que cinema é hoje possível? Depois de um cinema que se quis impuro e procurou contaminações com o teatro, a poesia e a pintura, que recusou ser indústria e, em crise, se voltou para dentro à procura de uma identidade, está pois por fazer esse outro cinema que, remontando através do mesmo itinerário, procure desviar-se dos lugares-comuns e desmontar a regularidade da região cinematográfica para aí se perder em novas maneiras de ver e de mostrar. Um cinema que chegado, com o país, a uma idade maior, não receie a descoincidência e seja capaz de desvendar as imagens que se escondem por detrás das imagens e, eventualmente, dos montes.

António Preto

O MARAVILHOSO

O mito é o da unidade de um reino maravilhoso, recolhido numa admirável e frágil autonomia. Talvez pela partilha deste sentimento, vários trabalhos cinematográficos, embora assinados por diferentes cineastas, escolheram a panorâmica que acompanha o recorte dos montes no horizonte, para a abertura (Máscaras de Noémia Delgado; Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro e Veredas de João César Monteiro) ou a conclusão (Sabores de Regina Guimarães e Saguenail) dos filmes que dedicaram à região de Trás-os-Montes. A recorrente imagem demarca geograficamente uma unidade de espaço e inscreve toda a acção (subsequente ou decorrida) num palco circular protegido, afirmando-a como ritual.
Mas há quem inverta o princípio deste reino maravilhoso e, através da mesma panorâmica que antes filmava os montes, filme o reino desencantado, isto é, o estrangeiro para onde migram os transmontanos, como o travelling final de Longe é a cidade de Ricardo Costa, sobre as colinas de Lisboa.
É na ideia que fazem as próprias comunidades transmontanas, do está para aquém dos montes e para lá de Trás-os-Montes, na construção social de um mundo exterior ao dito reino maravilhoso, que melhor poderemos compreender as práticas e as representações locais. É nas relações com o estrangeiro, que a crise e o choque se tornam visíveis mas também os valores transitivos entre duas realidades culturais se reconhecem.
O cinema, em Trás-os-Montes fez e faz parte desse mundo entendido como outro. Porque, por um lado, pouco se filmou nesta região de Portugal, o cineclubismo não fundou aí tradição e o cinema que, hoje, a distribuição comercial faz chegar às salas das suas cidades é o dos grandes estúdios americanos; por outro lado, porque os filmes aí rodados (na maioria durante a segunda metade da década de 70 e no início da de 80, com o fim do Ultramar e a redescoberta do país), entre os quais se contam objectos maiores da cinematografia portuguesa (lembre-se que a obra conjunta do casal António Reis e Margarida Cordeiro foi, na totalidade, realizada em Trás-os-Montes), persistem geralmente desconhecidos no território onde nasceram.
Neste reino aparentemente solene e fechado, mas caracterizado afinal pelo abandono da terra (que não guarda filhos nem conserva imagens) e pela crescente irrupção de símbolos da promessa de urbanidade, o cinema é nesta região – também ele – o reflexo das trocas (incluindo as comerciais) em que Trás-os-Montes existe.
O cinema aí realizado foi, quase sempre, um acto de resistência e achou em Trás-os-Montes as figuras privilegiadas duma resistência económica, política e cultural a defender por meio do registo fílmico e da reinterpretação formal. Ao mesmo tempo que recusou valores exógenos, entretanto introduzidos na região, julgou-os sumariamente como provas do abastardamento de formas originais e da capitulação à modernidade. Mas não seria o cinema, corpo estrangeiro nestas terras, o instrumento de reflexão melhor posicionado para analisar, com justeza,– não a suposta estranheza intrínseca a Trás-os-Montes –, mas o modo como Trás-os-Montes se foi definindo na sua relação com a diferença?

1.

A noção de que o exterior é longe perpassa todos os filmes realizados em Trás-os-Montes. As Américas ficam muito longe (para onde se deslocam muitos transmontanos na viragem do século XIX para o XX), como longe ficam as várias Áfricas (colonizadas primeiro e militarizadas depois) ou as Franças e as Alemanhas, com a hemorragia da emigração nas décadas de 60 e 70, que está longe de ser passado. Como longe é, ainda, Lisboa: “A fronteira é longínqua, quase ninguém foi a Espanha, mas a capital ainda é mais longe, quase nada vem de lá.” ouve-se, em Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro, enquanto a imagem mostra demoradamente o grande plano de um ancião calado.
O sentimento da lonjura de tudo, experimentado colectivamente, começa no abandono político. O aforamento generalizado de terras, que assegura a fixação mínima duma população, é a primeira expressão do destino a que, desde a formação da nacionalidade, a administração central consagrou as gentes das zonas raianas: o de guarda da fronteira. Herança histórica que se manteve pelos séculos e que, no regime democrático guardado pela União Europeia, se agravou com a crescente assimetria demográfica entre os Portugais interior e litoral, tendo a paisagem de Trás-os-Montes resistido – por essa razão e não por vontade própria – à fúria das auto-estradas que rasgaram o país. Esta região soube, desde sempre, que teria de, economicamente, contar consigo mesma (conservando uma organização social medieva, pouco hierarquizada, assente na divisão do trabalho e no trabalho da terra) e o que ultrapassasse essa sobrevivência comum seria um mundo estrangeiro. É um lugar onde “não se sabe quem é o rei que hoje reina”, como se ouve ainda naquele filme, porque se aprendeu a viver longe do olhar da capital. Ou num sistema de crença resumido por João César Monteiro e Maria Velho da Costa em Silvestre, no comentário de uma personagem: “Livrai-me dos pós do caminho e das caganças da corte”. Ou ainda, na estratégia formal encontrada por António Campos, em Falamos de Rio de Onor, para nos apresentar a investigadora vinda de Lisboa que entrevista os habitantes da aldeia, invariavelmente em contra-campo.

Mas, a autonomia é relativa. O advento da exploração mineira, a expedição improvisada à Guerra de 1914-18 e as privações impostas em nome da Segunda Guerra redefinirão a paisagem sócio-económica do interior rural e a emigração confirmar-se-á como a alternativa às duras condições de vida. Depois do Brasil e da Argentina, os transmontanos partem para o Porto (os poucos que estudam) ou Lisboa (para servir ou, como lembra o desassombrado Terra Fria, de António Campos, enviar as jovens “com a criança nos braços”), para Angola e Moçambique ou para os países desenvolvidos da Europa. A guerra colonial arrancará à região os jovens que sobram.
Trás-os-Montes viverá, numa parte considerável do século XX, habitada por fantasmas, posto que tanto os emigrantes como os combatentes são mortos-vivos para a comunidade local: existem num limbo entre a exterioridade insuportável e a regularidade dos sinais de vida. Contam-se entre estes sinais as cartas para a família (sendo as crianças alfabetizadas os necessários mediadores) e, no caso específico da emigração, as visitas sazonais e a entrada de riqueza.
No filme de João César Monteiro Os Dois Soldados, em que o realizador recria as aldeias e o mato africanos na ruralidade transmontana, brincando com o ser, o parecer e a irrealidade das guerras e do cinema, confundindo os ausentes e os presentes, um militar confidencia a outro: “Quando aparecer aos velhos, vão pensar que é um fantasma”. Mas para os que ficam, sair significará, cada vez mais, voltar endinheirado (“Vou-me embora. Também quero ficar rico” diz, já retornado à aldeia, um dos soldados, no mesmo filme), porque o silêncio com que se volta de África (do degredo ou da guerra) é o mesmo de alguma emigração frustrada que, discretamente, regressa tão abastada como quando partiu. O exterior será, durante muito tempo, o Eldorado de um Trás-os-Montes menos ligado ao trabalho da terra e mais despovoado.
O cinema que aí se fará – e que o ciclo A Reposição dá a ver – reconhece em Trás-os-Montes a vacilação entre o saber tradicional sedimentado no curso dos tempos e preservado por práticas de transmissão arreigadas no quotidiano (uma cultura arcaizante caracterizada pela economia das técnicas e produtora de um fantasioso imaginário sobre viajantes e reinos longínquos) e o crescente sentimento de abandono, no decorrer do último século, passando a ver nos reinos distantes a promessa de uma melhor vida.
Este cinema que, muitas vezes, procura um essencialismo telúrico e a integridade fiel aos ciclos naturais perdida na urbanidade, é atravessado por linhas de fuga que denunciam a partida dos transmontanos. O que desaponta uma certa esquerda que tendeu a projectar nalgumas tradições comunitárias do interior do país o germe da vocação popular para o comunismo. O exercício de resistência representado pelas investigações etnográficas de Jorge Dias transformar-se-á em, certos momentos, num cinema maneirista só compreensível no contexto pós-revolucionário. Uma sequência de Longe é a Cidade, onde a tendenciosidade dos entrevistadores que insistem para que o presidente da Junta de Freguesia diga a aldeia comunitária (o que ele não fará, dando até exemplos de um individualismo moderno), faz mais prova dos anseios circunstanciais do filme no seu tempo histórico do que das tradições que se propõe documentar.
Em Falamos de Rio de Onor, que – como o filme anterior do cineasta, Vilarinho das Furnas (1971) – parte da obra do antropólogo Jorge Dias, António Campos pontua o documento sobre uma das aldeias-estandarte do comunitarismo com os sinais do êxodo rural (a professora primária que justifica a falta de alunos pela emigração dos jovens casais, a entrega de cartas chegadas do estrangeiro pelo carteiro da aldeia,...), descobrindo na conversa encenada, no início do filme, entre dois homens (o desejo de partir do mais novo contrariado pelo discurso da fidelidade à terra do mais velho), na conversa similar entre duas mulheres (que desdramatizam os sacrifícios a que a emigração obriga as novas gerações, comparativamente à sua juventude, submetida aos penosos trabalhos do “fabrico do carvão”) e no momento final (onde uma Renault 4L vem buscar um casal com uma mala de viagem e um bebé ao colo) o arco evolutivo das mentalidades na aldeia. A realidade do projecto individual de emigração é integrado, sem conflito (ao nível do entendimento das razões da partida), pelo conjunto do grupo social. Em 1976, António Reis e Margarida Cordeiro abrem e concluem o seu Trás-os-Montes numa pequena estação ferroviária (com a derradeira imagem metafórica de um comboio que se afasta na noite escura, deixando atrás de si o rasto branco do vapor) não sem antes se ouvir: “Não fica cá ninguém.”
Poucos anos depois, no início da década 80, quando se sabia já que as arrastadas negociações entre Portugal e a Comunidade Económica Europeia chegariam a bom termo, João César Monteiro conclui Silvestre com uma jovem Maria de Medeiros que, mergulhada na grande projecção do diapositivo de uma paisagem galáctica, diz: “Agora estou só diante das estrelas”. A ironia de César Monteiro literaliza o novo desejo português de Europa – a comunitária –, que venha em socorro da frágil democracia nacional e estanque a hemorragia da emigração. Também a transmontana.

2.

Neste reino esquecido, a constância das paisagens natural, edificada e social – sugerida pelo aparente fechamento da região – é uma imagem enganosa. O que ao olhar urbano aparece como panorama virgem é, pelo contrário, um produto profundamente transformado pela actividade humana. Regina Guimarães e Saguenail explicam, em Sabores, a natureza artificiosa de toda a paisagem, entre o dado histórico que ela representa e o enquadramento cultural em que procuramos apreendê-la. Os autores reconhecem nas terras transmontanas um território recentemente transfigurado, num primeiro momento, aquando da campanha do trigo empreendida pelo regime salazarista; mais tarde e até nós (época em que a legislação interdita as galinhas na via pública, as estrumeiras dentro das aldeias e a combustão dos resíduos sólidos), na progressiva reconquista pelos matos e florestas dos terrenos entretanto abandonados.
Os caminhos que atravessam a paisagem também mudam: se Máscaras de Noémia Delgado decorre muitas vezes na “lamaçada” que são as ruas das aldeias transmontanas no Inverno e Longe é a Cidade, em 1981, assiste, numa reunião popular, aos desentendimentos gerados pelo calcetamento das ruas; em meados da década de 80, o tempo é já o do entusiasmo abonado pela Comunidade Europeia, que rompe a paisagem com novas vias de comunicação. Matar Saudades de Fernando Lopes, devedor tardio do neo-realismo (o tema cristão do sacrifício do herói, perdido no choque entre dois mundos morais), expõe com clareza as mudanças na terra transmontana, através dos olhos de um emigrante que, depois de dez anos de ausência, regressa. O primeiro plano do filme é o do camião (símbolo das trocas comerciais terrestres entre o estrangeiro e o país) que lhe dá boleia e cruza o plano por uma estrada recentemente aberta, larga e alcatroada, que cortando os montes, transformou a paisagem em estaleiro. Nos planos seguintes, encontramos já o camião numa estrada nacional para, à medida que a aldeia se avizinha, as ruas e os caminhos se mostrarem os mesmos de há muito. A aproximação física do protagonista ao seu destino anda a par de uma ampliação do plano geral à realidade particular.
Mas estes mortos-vivos retornados trazem consigo bens materiais (alguns filmes convocam a novidade, noutros tempos, da grafonola) e novos valores morais de outros mundos. O “americano” de Terra Fria, de António Campos, financia o restauro do novo altar da igreja da aldeia e realiza empréstimos aos conterrâneos, numa estratégia que possa recobrar a respeitabilidade e garantir a reintegração na comunidade; mas introduz, simultaneamente, novos elementos na vida local (os perfumes, a electricidade, a rádio, a circulação de dinheiro no quotidiano, as revistas importadas e o culto da ociosidade) que, na década de 1940 em que decorre a acção, produzem um novo ambiente social, com profundas consequências culturais, nomeadamente ao nível da troca das mulheres. Neste filme, como noutros, o emigrante é figurado como uma ameaça ao equilíbrio social reinante, assente na estrita ligação ao natural. Num raccord politicamente significativo, ao individualismo “americano”, António Campos opõe a imagem das vezeiras, antiga prática em que cada habitante, num sistema rotativo, se encarregava de conduzir o gado de todo o povo até aos montes e aí o guardar enquanto pastava. Em contrapartida, Pedro Só (o mendigo ostracizado no filme de Alfredo Tropa) e a solidão do, a um só tempo, emigrante e ex-combatente no Ultramar de Matar Saudades comentam criticamente o monolitismo cultural campesino em Trás-os-Montes. Em todos eles, a reflexão etnológica a que se propõem permanece muito aquém da perspectiva cinematográfica. Os filmes nascidos em Trás-os-Montes revelam-se frequentemente, entre o olhar etnográfico de Máscaras de Noémia Delgado (apoiado no texto e na supervisão dos especialistas Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamin Pereira) e o cinema cosmogónico do casal Reis/Cordeiro, constrangidos por um entendimento estreito do que são as especificidades culturais de um lugar. Há um leque de recusas, que se manifestam nos filmes em lacunas, nomeadamente no que respeita aos indícios de urbanidade e às aculturações. Quantos reflectem a profunda transformação das cidades transmontanas no decorrer dos anos 80 e 90? Quantos destes filmes atentam na intensa circulação entre a cidade e as aldeias? E as introduções culturais trazidas pelos emigrantes sem as encerrar num juízo de valor sumário? Basta notar que a maioria destes filmes evita, no enquadramento dos planos, as casas modernas dos habitantes emigrados, demasiado dissemelhantes do restante casario. Lembro-me, no contexto de um trabalho de campo que realizei, de vários antigos habitantes de Vilarinho das Furnas lamentarem a escolha de António Campos em não filmar as casas mais urbanizadas da aldeia, imagens que significariam para eles, uma prova do investimento dos moradores e de progresso.
[1]
Há discretos sinais, neste cinema português, dos elementos estrangeiros introduzidos na vida transmontana que, com a evolução dos tempos ultrapassam o “doutor da cidade” e se dão a ver em aparição. Cito alguns: numa aldeia, as loas ecoam a Revolução de Abril ocorrida nesse ano e aludem ao “virar do capote do regedor” e à sua eleição democrática pelo “povo iludido”, em Máscaras; apregoa-se durante o leilão do ramo, no Dia de Reis: “Vai para a Espanha? Em Portugal também há dinheiro!” para, no final, se rematar “Vai para a França!”, ainda naquele filme; a Tia Rita reclama ser Dona Rita, depois do regresso do filho da América, em Terra Fria; uma criança, num barco que faz o Douro, diz “Alemanha” ao que o pai a corrige “Espanha”, em Trás-os-Montes; a descoberta dos “drogados” e da segurança social, em Lisboa, surge numa conversa entre jovens na Moimenta, em Longe é a Cidade; a brevíssima referência a Champigny, onde existiu o maior “bidonville” de portugueses em França, em Matar Saudades; uma t-shirt com “Joy Division” estampado, ainda no mesmo filme; e a introdução de um tema contemporâneo como o novo aeroporto de Bragança, numa canção tradicional, em Sabores.
Há novos lugares em Trás-os-Montes (e só pontualmente este cinema os quis compreender) que reconfiguram as práticas sociais e actualizam os códigos morais. Matar Saudades esboça essa mudança, filmando a discoteca de província que vem substituir os bailes tradicionais e procurando as personagens autóctones reconduzidas ao limiar da morte social (o degredado, o ex-combatente, o emigrante, a prostituta), cuja sobrevivência se paga com a descrição. O que Terra Fria, de António Campos, tem de comovedora inteligência é o modo como expõe esse silêncio: a imagem repetida do manto da neve que tudo recobre, que apaga todas as marcas (como a farinha branca cai continuadamente da mó cobrindo um Santiago manchado de sangue, morto à pazada por Ermelinda) e reafirma a calma aparente do tecido social.
Mas a vivência transmontana da raia foi sempre, desmentindo as aparências, uma realidade assente nas trocas com o outro. Em Longe é a Cidade, o barbeiro da aldeia (também presidente da Junta de Freguesia) e o guarda fiscal a quem corta o cabelo conversam sobre a abertura sazonal da fronteira (“É bom para os emigrantes”) e especulam se não poderá ela, um dia, ficar definitivamente aberta. Mas as práticas raramente se compadecem com os regulamentos. As fronteiras legais foram, geralmente, mais permeáveis do que oficialmente se apregoa e em Falamos de Rio de Onor assistimos à naturalidade com que a população da aldeia atravessa quotidianamente a fronteira, com o consentimento das autoridades fiscais, para cultivar campos em território espanhol. E assim, em Terra Fria (do mesmo António Campos impedido, à época da rodagem de Falamos de Rio de Onor, de filmar no lado espanhol), uma personagem comenta que depois do negócio da guerra de Espanha, são “o contrabando e o mercado negro” as possibilidades de ganhar melhor a vida em Trás-os-Montes. Por detrás da imagem telúrica transmontana, o cinema pressente outras imagens sociais menos determinadas.

3.

O cinema que se fez nesta terra de fronteiras é um cinema que ansiou por circunscrever uma realidade social. Mas, os filmes que melhor conseguiram ler – e dar a ver – a região na sua complexidade são, afinal e invariavelmente, os que escolheram a via do discurso mítico, o que oscila entre a história material e a resistência do imaginário. Há três lugares específicos reconhecidos por este cinema para o trânsito entre o mundo tangível e o onírico: a ponte (Margens de Pedro Sena Nunes é, acima de tudo, uma reflexão sobre a passagem do mundo dos vivos ao mundo dos mortos, ideia ancestralmente associada à travessia de um rio; e em Trás-os-Montes, duas crianças perguntam-se, no regresso de um passeio à outra margem do rio: “Como é que dois rapazes como nós podem ser os próprios antepassados? O passeio terá demorado algumas centenas de anos!”), a fogueira (em roda da qual, ao serão, se contavam histórias) e a cama (onde as mães recitam aos filhos os contos que
se confundirão com os sonhos). Estes lugares são frequentemente visitados neste cinema e convocam o jogo tensivo entre o mundo palpável e a narrativa arcaizante, em que se constroem os filmes mais perscrutadores de Trás-os-Montes.
A objectividade metodológica que procura localizar fisicamente a história (pelo discurso dos habitantes locais; pelo registo das actividades tradicionais em vias de desaparecimento; pela descrição mais ou menos exaustiva das paisagens) intercala com o exercício de reinterpretação de um universo mitológico irrigado por lendas populares e rituais pagãos. Creio, com Jean Rouch, que será partindo da exploração objectiva da ficção (dos mitos ancestrais como das representações contemporâneas, especulando as inter-relações entre os diferentes mecanismos de encenação) e na revelação dos meios concretos da produção cinematográfica, que poderemos tocar a centelha do real.
A escolha, de vários realizadores, em fazer encarnar as personagens de ficção por habitantes locais, radicaliza a fricção entre a verosimilhança e o fantasioso. Quem é mais estrangeiro? Os actores-amadores face à fabricação do cinema ou as equipas de rodagem no reino de Trás-os-Montes? Os representantes óbvios desse trabalho na proximidade (e da redescoberta de sentidos lógicos na experiência do extraordinário) são Reis/Cordeiro e João César Monteiro. Aí, o cinema procura e expõe-se na frágil estranheza de se fazer em Trás-os-Montes.
Mas há outros exercícios capazes de adensar a trama em que se mostra Trás-os-Montes. A sequência final de Matar Saudades faz, demoradamente, surgir na paisagem (emoldurada por duas grandes árvores, quais limites de tela de projecção) um desfile do «Auto da Paixão» que cita Acto da Primavera de Manoel de Oliveira.
Ou, ainda, a sequência da homilia, registada por António Campos, em que o padre de Rio de Onor homenageia o trabalho de Jorge Dias e, sem compreender o que há de representação histórica num texto etnográfico (lamenta que, com a progressiva urbanização da aldeia, o livro “já não corresponde à verdade”) ou, pelo contrário, fazendo dela instrumento persuasor, pede à população que retome as tradições, nomeadamente as fixadas naquele estudo, concluindo: “Procurai respeitar e viver a obra do Dr. Jorge Dias”. Campos sabe que só no cruzamento entre as várias representações – o texto científico, o ritual litúrgico e o cinema – será possível “falarmos” de Rio de Onor.
Somos, pois, avisados de que antes de haver paisagem há o olhar sobre a paisagem. Mnemónico e cultural. Isto é: vemos, invariavelmente, através dos olhos de quem observou o mesmo antes de nós e o deu a ver.
Estes filmes tratam, todos, da encenação de uma paisagem. O reino maravilhoso não existe, nunca existiu, mas para ver Trás-os-Montes, há que começar por interrogar o que há de maravilhado no nosso olhar – e no olhar deste cinema –, neste reino. Mas também o que há de maravilhoso neste cinema.


João Sousa Cardoso

[1] “Estas casas [as novas] não aparecem. Aparecem estas casas todas, mais velhotas. Se foi para dar uma imagem de que Vilarinho teria de ser pago a um preço irrisório, para que as pessoas valorizassem aquilo muito mal... Eu não posso dizer que foi por essa razão. Agora, que as coisas de Vilarinho não aparecem... Não.”, testemunho de uma antiga habitante, corroborado por outros aldeões presentes, registado em Livro do Movimento 2002-2005 de Daniela Pães Leão e João Sousa Cardoso, Porto, 2005.

QUALQUER PORTUGUÊS MÉDIO

Qualquer português médio (o que quer que isso seja...), homem de bem ou de mal, oriundo dos círculos de alta pressão, da massa dita anónima ou da ralé, partilha com os seus pares e ímpares uma noção que 33 anos de democracia representativa não conseguiram invalidar: Lisboa é Portugal, o resto é paisagem. À luz deste lugar comum torna-se porventura mais fácil entender o cinema que tem passado por Trás-os-Montes: foi a própria interioridade das terras transmontanas que, num certo sentido, legitimou a escolha de alguns cineastas os quais, por razões diversas e em contextos não menos distintos, plantaram o seu tripé, como cavalete, diante de sítios e seres inscritos nesse território «encantado».
Recolher imagens e sons, fabricar cenas e histórias num local arredado tanto do litoral quanto da capital pôde ser entendido como um gesto de busca do miolo da nossa identidade, como uma pesquisa acerca das raízes. No entanto, poucos foram os cineastas capazes de trazer de Trás-os-Montes um conhecimento maior do que aquele de que o simples turista se autoriza a gabar-se. Significa isto que Trás-os-Montes serviu sobretudo de décor, nos casos mais sérios de paisagem exterior e interior, estando evidentemente por pensar e fazer um cinema que interrogue o presente e o passado, os reais e os imaginários, os escassos privilégios e os inúmeros handicaps que na província transmontana geram inquietudes ou se encontram em conflito, ora gritante ora subterrâneo.
Ainda assim, não deixa de ser verdade que a passagem da câmara por lugares ainda pouco moldados pela força trituradora da máquina audiovisual teve consequências notórias. Além do exemplo extremo do renascimento da festa dos rapazes – que se ficou a dever a uma reconstituição do ritual, na aldeia de Varge, ocorrida a pedido da cineasta Noémia Delgado – há que enfatizar e saudar a importância da obra de Reis/Cordeiro, cuja envergadura artística, não obstante a relativa confidencialidade dos filmes de sua autoria, catapultou Trás-os-Montes para o patamar de território venerado e mítico aos olhos dos cinéfilos portugueses e não só. Mais do que qualquer outro décor, Trás-os-Montes haveria pois de ter parecido apetecível, coisa que não veio exactamente a acontecer, por variadíssimas razões, as menores das quais não serão as dificuldades de acolhimento in loco (às quais se acrescentavam, até aos anos 90, as dificuldades de circulação) e a ausência de políticas regionais consistentes.
Se é verdade que cineastas como Reis/Cordeiro, César Monteiro ou Sena Nunes tiveram a sapiência de colher em Trás-os-Montes os sinais suficientes para construir reflexões que roçam a interrogação metafísica, as grandes questões, de toda a sorte, que se colocam em zonas desertificadas e economicamente sinistradas como o “para lá do Marão” não têm interessado os cineastas de alhures, nem inspirado desejos de cinema aos autóctones. Tanto quanto sabemos, Sabores continua a ser o único filme feito em Trás-os-Montes que levanta a lebre do devir da paisagem e dos seus guardiães, da possibilidade de fazer coexistir vários modelos de crescimento, da especificidade das janelas mais a norte dos países do sul, etc... Por outro lado, os obstáculos naturais, a dureza climática, a religiosidade disseminada no quotidiano, a sobrevivência de mitos ancestrais e outros elementos que adensam o lugar, no sentido lato, poderiam ter servido de alavanca a um sem número de filmes num país em que a maioria dos citadinos pertencem a famílias rurais recentemente exiladas. Se ainda hoje os transmontanos concebem o luxo de cultivar centeio pelo mero prazer de ter melhor pão, qual o motivo pelo qual se prescindiu do luxo das imagens-tempo, essas mesmas que, às vezes, conseguem remar contra a maré do esquecimento?
Uma leitura aturada do visível, para o lado do documentário ou para as bandas da ficção – sabendo-se que as fronteiras entre os géneros, a existirem, são ténues, e que qualquer ficção documenta como todo o documentário ficciona – traria forçosamente a lume os crimes políticos que, ao longo da ditadura, não apenas comprometeram seriamente as actividades humanas nessa parte do Portugal profundo (embora o Estado Novo lá tenha ido pescar figuras, importantes mas amnésicas, do regime) como obrigaram uma grossa fatia da população a migrar – para o litoral, para Franças e Germânias, para África, para a América Latina. Uma escuta consequente dos relatos de vida de quem ainda tem para contar as histórias dos que, em regra, menos contaram, traria fatalmente à baila o desajuste entre as aspirações das comunidades locais e o cinismo das políticas governamentais, bem como o quadro negro de uma globalização que, longe de atenuar as disparidades ao nível das expectativas, mais não faz do que cavar o fosso que separa o mundo pós-urbano das ruínas do mundo rural, a despeito de uma normalização tendente a desfigurar todos os sonhos e todas as realidades.
Numa era em que a reescrita da História é desígnio de quem preconiza o pensamento único, resta-nos sonhar com a explosão improvável mas necessária, de cinemas e circuitos de difusão que partam de dentro para dentro e de dentro para fora, de cinemas a contra-corrente desta corrida para o fim do mundo que tanto parece fascinar os pós-neo e os neo-pós. Para que o Eu da Europa não venha a ser puro álibi da transformação dos lugares em espaços cénicos e das pessoas em figurantes sem texto, nem tempo, nem temperamento.


Regina Guimarães e Saguenail