sexta-feira, 17 de agosto de 2007

O MARAVILHOSO

O mito é o da unidade de um reino maravilhoso, recolhido numa admirável e frágil autonomia. Talvez pela partilha deste sentimento, vários trabalhos cinematográficos, embora assinados por diferentes cineastas, escolheram a panorâmica que acompanha o recorte dos montes no horizonte, para a abertura (Máscaras de Noémia Delgado; Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro e Veredas de João César Monteiro) ou a conclusão (Sabores de Regina Guimarães e Saguenail) dos filmes que dedicaram à região de Trás-os-Montes. A recorrente imagem demarca geograficamente uma unidade de espaço e inscreve toda a acção (subsequente ou decorrida) num palco circular protegido, afirmando-a como ritual.
Mas há quem inverta o princípio deste reino maravilhoso e, através da mesma panorâmica que antes filmava os montes, filme o reino desencantado, isto é, o estrangeiro para onde migram os transmontanos, como o travelling final de Longe é a cidade de Ricardo Costa, sobre as colinas de Lisboa.
É na ideia que fazem as próprias comunidades transmontanas, do está para aquém dos montes e para lá de Trás-os-Montes, na construção social de um mundo exterior ao dito reino maravilhoso, que melhor poderemos compreender as práticas e as representações locais. É nas relações com o estrangeiro, que a crise e o choque se tornam visíveis mas também os valores transitivos entre duas realidades culturais se reconhecem.
O cinema, em Trás-os-Montes fez e faz parte desse mundo entendido como outro. Porque, por um lado, pouco se filmou nesta região de Portugal, o cineclubismo não fundou aí tradição e o cinema que, hoje, a distribuição comercial faz chegar às salas das suas cidades é o dos grandes estúdios americanos; por outro lado, porque os filmes aí rodados (na maioria durante a segunda metade da década de 70 e no início da de 80, com o fim do Ultramar e a redescoberta do país), entre os quais se contam objectos maiores da cinematografia portuguesa (lembre-se que a obra conjunta do casal António Reis e Margarida Cordeiro foi, na totalidade, realizada em Trás-os-Montes), persistem geralmente desconhecidos no território onde nasceram.
Neste reino aparentemente solene e fechado, mas caracterizado afinal pelo abandono da terra (que não guarda filhos nem conserva imagens) e pela crescente irrupção de símbolos da promessa de urbanidade, o cinema é nesta região – também ele – o reflexo das trocas (incluindo as comerciais) em que Trás-os-Montes existe.
O cinema aí realizado foi, quase sempre, um acto de resistência e achou em Trás-os-Montes as figuras privilegiadas duma resistência económica, política e cultural a defender por meio do registo fílmico e da reinterpretação formal. Ao mesmo tempo que recusou valores exógenos, entretanto introduzidos na região, julgou-os sumariamente como provas do abastardamento de formas originais e da capitulação à modernidade. Mas não seria o cinema, corpo estrangeiro nestas terras, o instrumento de reflexão melhor posicionado para analisar, com justeza,– não a suposta estranheza intrínseca a Trás-os-Montes –, mas o modo como Trás-os-Montes se foi definindo na sua relação com a diferença?

1.

A noção de que o exterior é longe perpassa todos os filmes realizados em Trás-os-Montes. As Américas ficam muito longe (para onde se deslocam muitos transmontanos na viragem do século XIX para o XX), como longe ficam as várias Áfricas (colonizadas primeiro e militarizadas depois) ou as Franças e as Alemanhas, com a hemorragia da emigração nas décadas de 60 e 70, que está longe de ser passado. Como longe é, ainda, Lisboa: “A fronteira é longínqua, quase ninguém foi a Espanha, mas a capital ainda é mais longe, quase nada vem de lá.” ouve-se, em Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro, enquanto a imagem mostra demoradamente o grande plano de um ancião calado.
O sentimento da lonjura de tudo, experimentado colectivamente, começa no abandono político. O aforamento generalizado de terras, que assegura a fixação mínima duma população, é a primeira expressão do destino a que, desde a formação da nacionalidade, a administração central consagrou as gentes das zonas raianas: o de guarda da fronteira. Herança histórica que se manteve pelos séculos e que, no regime democrático guardado pela União Europeia, se agravou com a crescente assimetria demográfica entre os Portugais interior e litoral, tendo a paisagem de Trás-os-Montes resistido – por essa razão e não por vontade própria – à fúria das auto-estradas que rasgaram o país. Esta região soube, desde sempre, que teria de, economicamente, contar consigo mesma (conservando uma organização social medieva, pouco hierarquizada, assente na divisão do trabalho e no trabalho da terra) e o que ultrapassasse essa sobrevivência comum seria um mundo estrangeiro. É um lugar onde “não se sabe quem é o rei que hoje reina”, como se ouve ainda naquele filme, porque se aprendeu a viver longe do olhar da capital. Ou num sistema de crença resumido por João César Monteiro e Maria Velho da Costa em Silvestre, no comentário de uma personagem: “Livrai-me dos pós do caminho e das caganças da corte”. Ou ainda, na estratégia formal encontrada por António Campos, em Falamos de Rio de Onor, para nos apresentar a investigadora vinda de Lisboa que entrevista os habitantes da aldeia, invariavelmente em contra-campo.

Mas, a autonomia é relativa. O advento da exploração mineira, a expedição improvisada à Guerra de 1914-18 e as privações impostas em nome da Segunda Guerra redefinirão a paisagem sócio-económica do interior rural e a emigração confirmar-se-á como a alternativa às duras condições de vida. Depois do Brasil e da Argentina, os transmontanos partem para o Porto (os poucos que estudam) ou Lisboa (para servir ou, como lembra o desassombrado Terra Fria, de António Campos, enviar as jovens “com a criança nos braços”), para Angola e Moçambique ou para os países desenvolvidos da Europa. A guerra colonial arrancará à região os jovens que sobram.
Trás-os-Montes viverá, numa parte considerável do século XX, habitada por fantasmas, posto que tanto os emigrantes como os combatentes são mortos-vivos para a comunidade local: existem num limbo entre a exterioridade insuportável e a regularidade dos sinais de vida. Contam-se entre estes sinais as cartas para a família (sendo as crianças alfabetizadas os necessários mediadores) e, no caso específico da emigração, as visitas sazonais e a entrada de riqueza.
No filme de João César Monteiro Os Dois Soldados, em que o realizador recria as aldeias e o mato africanos na ruralidade transmontana, brincando com o ser, o parecer e a irrealidade das guerras e do cinema, confundindo os ausentes e os presentes, um militar confidencia a outro: “Quando aparecer aos velhos, vão pensar que é um fantasma”. Mas para os que ficam, sair significará, cada vez mais, voltar endinheirado (“Vou-me embora. Também quero ficar rico” diz, já retornado à aldeia, um dos soldados, no mesmo filme), porque o silêncio com que se volta de África (do degredo ou da guerra) é o mesmo de alguma emigração frustrada que, discretamente, regressa tão abastada como quando partiu. O exterior será, durante muito tempo, o Eldorado de um Trás-os-Montes menos ligado ao trabalho da terra e mais despovoado.
O cinema que aí se fará – e que o ciclo A Reposição dá a ver – reconhece em Trás-os-Montes a vacilação entre o saber tradicional sedimentado no curso dos tempos e preservado por práticas de transmissão arreigadas no quotidiano (uma cultura arcaizante caracterizada pela economia das técnicas e produtora de um fantasioso imaginário sobre viajantes e reinos longínquos) e o crescente sentimento de abandono, no decorrer do último século, passando a ver nos reinos distantes a promessa de uma melhor vida.
Este cinema que, muitas vezes, procura um essencialismo telúrico e a integridade fiel aos ciclos naturais perdida na urbanidade, é atravessado por linhas de fuga que denunciam a partida dos transmontanos. O que desaponta uma certa esquerda que tendeu a projectar nalgumas tradições comunitárias do interior do país o germe da vocação popular para o comunismo. O exercício de resistência representado pelas investigações etnográficas de Jorge Dias transformar-se-á em, certos momentos, num cinema maneirista só compreensível no contexto pós-revolucionário. Uma sequência de Longe é a Cidade, onde a tendenciosidade dos entrevistadores que insistem para que o presidente da Junta de Freguesia diga a aldeia comunitária (o que ele não fará, dando até exemplos de um individualismo moderno), faz mais prova dos anseios circunstanciais do filme no seu tempo histórico do que das tradições que se propõe documentar.
Em Falamos de Rio de Onor, que – como o filme anterior do cineasta, Vilarinho das Furnas (1971) – parte da obra do antropólogo Jorge Dias, António Campos pontua o documento sobre uma das aldeias-estandarte do comunitarismo com os sinais do êxodo rural (a professora primária que justifica a falta de alunos pela emigração dos jovens casais, a entrega de cartas chegadas do estrangeiro pelo carteiro da aldeia,...), descobrindo na conversa encenada, no início do filme, entre dois homens (o desejo de partir do mais novo contrariado pelo discurso da fidelidade à terra do mais velho), na conversa similar entre duas mulheres (que desdramatizam os sacrifícios a que a emigração obriga as novas gerações, comparativamente à sua juventude, submetida aos penosos trabalhos do “fabrico do carvão”) e no momento final (onde uma Renault 4L vem buscar um casal com uma mala de viagem e um bebé ao colo) o arco evolutivo das mentalidades na aldeia. A realidade do projecto individual de emigração é integrado, sem conflito (ao nível do entendimento das razões da partida), pelo conjunto do grupo social. Em 1976, António Reis e Margarida Cordeiro abrem e concluem o seu Trás-os-Montes numa pequena estação ferroviária (com a derradeira imagem metafórica de um comboio que se afasta na noite escura, deixando atrás de si o rasto branco do vapor) não sem antes se ouvir: “Não fica cá ninguém.”
Poucos anos depois, no início da década 80, quando se sabia já que as arrastadas negociações entre Portugal e a Comunidade Económica Europeia chegariam a bom termo, João César Monteiro conclui Silvestre com uma jovem Maria de Medeiros que, mergulhada na grande projecção do diapositivo de uma paisagem galáctica, diz: “Agora estou só diante das estrelas”. A ironia de César Monteiro literaliza o novo desejo português de Europa – a comunitária –, que venha em socorro da frágil democracia nacional e estanque a hemorragia da emigração. Também a transmontana.

2.

Neste reino esquecido, a constância das paisagens natural, edificada e social – sugerida pelo aparente fechamento da região – é uma imagem enganosa. O que ao olhar urbano aparece como panorama virgem é, pelo contrário, um produto profundamente transformado pela actividade humana. Regina Guimarães e Saguenail explicam, em Sabores, a natureza artificiosa de toda a paisagem, entre o dado histórico que ela representa e o enquadramento cultural em que procuramos apreendê-la. Os autores reconhecem nas terras transmontanas um território recentemente transfigurado, num primeiro momento, aquando da campanha do trigo empreendida pelo regime salazarista; mais tarde e até nós (época em que a legislação interdita as galinhas na via pública, as estrumeiras dentro das aldeias e a combustão dos resíduos sólidos), na progressiva reconquista pelos matos e florestas dos terrenos entretanto abandonados.
Os caminhos que atravessam a paisagem também mudam: se Máscaras de Noémia Delgado decorre muitas vezes na “lamaçada” que são as ruas das aldeias transmontanas no Inverno e Longe é a Cidade, em 1981, assiste, numa reunião popular, aos desentendimentos gerados pelo calcetamento das ruas; em meados da década de 80, o tempo é já o do entusiasmo abonado pela Comunidade Europeia, que rompe a paisagem com novas vias de comunicação. Matar Saudades de Fernando Lopes, devedor tardio do neo-realismo (o tema cristão do sacrifício do herói, perdido no choque entre dois mundos morais), expõe com clareza as mudanças na terra transmontana, através dos olhos de um emigrante que, depois de dez anos de ausência, regressa. O primeiro plano do filme é o do camião (símbolo das trocas comerciais terrestres entre o estrangeiro e o país) que lhe dá boleia e cruza o plano por uma estrada recentemente aberta, larga e alcatroada, que cortando os montes, transformou a paisagem em estaleiro. Nos planos seguintes, encontramos já o camião numa estrada nacional para, à medida que a aldeia se avizinha, as ruas e os caminhos se mostrarem os mesmos de há muito. A aproximação física do protagonista ao seu destino anda a par de uma ampliação do plano geral à realidade particular.
Mas estes mortos-vivos retornados trazem consigo bens materiais (alguns filmes convocam a novidade, noutros tempos, da grafonola) e novos valores morais de outros mundos. O “americano” de Terra Fria, de António Campos, financia o restauro do novo altar da igreja da aldeia e realiza empréstimos aos conterrâneos, numa estratégia que possa recobrar a respeitabilidade e garantir a reintegração na comunidade; mas introduz, simultaneamente, novos elementos na vida local (os perfumes, a electricidade, a rádio, a circulação de dinheiro no quotidiano, as revistas importadas e o culto da ociosidade) que, na década de 1940 em que decorre a acção, produzem um novo ambiente social, com profundas consequências culturais, nomeadamente ao nível da troca das mulheres. Neste filme, como noutros, o emigrante é figurado como uma ameaça ao equilíbrio social reinante, assente na estrita ligação ao natural. Num raccord politicamente significativo, ao individualismo “americano”, António Campos opõe a imagem das vezeiras, antiga prática em que cada habitante, num sistema rotativo, se encarregava de conduzir o gado de todo o povo até aos montes e aí o guardar enquanto pastava. Em contrapartida, Pedro Só (o mendigo ostracizado no filme de Alfredo Tropa) e a solidão do, a um só tempo, emigrante e ex-combatente no Ultramar de Matar Saudades comentam criticamente o monolitismo cultural campesino em Trás-os-Montes. Em todos eles, a reflexão etnológica a que se propõem permanece muito aquém da perspectiva cinematográfica. Os filmes nascidos em Trás-os-Montes revelam-se frequentemente, entre o olhar etnográfico de Máscaras de Noémia Delgado (apoiado no texto e na supervisão dos especialistas Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamin Pereira) e o cinema cosmogónico do casal Reis/Cordeiro, constrangidos por um entendimento estreito do que são as especificidades culturais de um lugar. Há um leque de recusas, que se manifestam nos filmes em lacunas, nomeadamente no que respeita aos indícios de urbanidade e às aculturações. Quantos reflectem a profunda transformação das cidades transmontanas no decorrer dos anos 80 e 90? Quantos destes filmes atentam na intensa circulação entre a cidade e as aldeias? E as introduções culturais trazidas pelos emigrantes sem as encerrar num juízo de valor sumário? Basta notar que a maioria destes filmes evita, no enquadramento dos planos, as casas modernas dos habitantes emigrados, demasiado dissemelhantes do restante casario. Lembro-me, no contexto de um trabalho de campo que realizei, de vários antigos habitantes de Vilarinho das Furnas lamentarem a escolha de António Campos em não filmar as casas mais urbanizadas da aldeia, imagens que significariam para eles, uma prova do investimento dos moradores e de progresso.
[1]
Há discretos sinais, neste cinema português, dos elementos estrangeiros introduzidos na vida transmontana que, com a evolução dos tempos ultrapassam o “doutor da cidade” e se dão a ver em aparição. Cito alguns: numa aldeia, as loas ecoam a Revolução de Abril ocorrida nesse ano e aludem ao “virar do capote do regedor” e à sua eleição democrática pelo “povo iludido”, em Máscaras; apregoa-se durante o leilão do ramo, no Dia de Reis: “Vai para a Espanha? Em Portugal também há dinheiro!” para, no final, se rematar “Vai para a França!”, ainda naquele filme; a Tia Rita reclama ser Dona Rita, depois do regresso do filho da América, em Terra Fria; uma criança, num barco que faz o Douro, diz “Alemanha” ao que o pai a corrige “Espanha”, em Trás-os-Montes; a descoberta dos “drogados” e da segurança social, em Lisboa, surge numa conversa entre jovens na Moimenta, em Longe é a Cidade; a brevíssima referência a Champigny, onde existiu o maior “bidonville” de portugueses em França, em Matar Saudades; uma t-shirt com “Joy Division” estampado, ainda no mesmo filme; e a introdução de um tema contemporâneo como o novo aeroporto de Bragança, numa canção tradicional, em Sabores.
Há novos lugares em Trás-os-Montes (e só pontualmente este cinema os quis compreender) que reconfiguram as práticas sociais e actualizam os códigos morais. Matar Saudades esboça essa mudança, filmando a discoteca de província que vem substituir os bailes tradicionais e procurando as personagens autóctones reconduzidas ao limiar da morte social (o degredado, o ex-combatente, o emigrante, a prostituta), cuja sobrevivência se paga com a descrição. O que Terra Fria, de António Campos, tem de comovedora inteligência é o modo como expõe esse silêncio: a imagem repetida do manto da neve que tudo recobre, que apaga todas as marcas (como a farinha branca cai continuadamente da mó cobrindo um Santiago manchado de sangue, morto à pazada por Ermelinda) e reafirma a calma aparente do tecido social.
Mas a vivência transmontana da raia foi sempre, desmentindo as aparências, uma realidade assente nas trocas com o outro. Em Longe é a Cidade, o barbeiro da aldeia (também presidente da Junta de Freguesia) e o guarda fiscal a quem corta o cabelo conversam sobre a abertura sazonal da fronteira (“É bom para os emigrantes”) e especulam se não poderá ela, um dia, ficar definitivamente aberta. Mas as práticas raramente se compadecem com os regulamentos. As fronteiras legais foram, geralmente, mais permeáveis do que oficialmente se apregoa e em Falamos de Rio de Onor assistimos à naturalidade com que a população da aldeia atravessa quotidianamente a fronteira, com o consentimento das autoridades fiscais, para cultivar campos em território espanhol. E assim, em Terra Fria (do mesmo António Campos impedido, à época da rodagem de Falamos de Rio de Onor, de filmar no lado espanhol), uma personagem comenta que depois do negócio da guerra de Espanha, são “o contrabando e o mercado negro” as possibilidades de ganhar melhor a vida em Trás-os-Montes. Por detrás da imagem telúrica transmontana, o cinema pressente outras imagens sociais menos determinadas.

3.

O cinema que se fez nesta terra de fronteiras é um cinema que ansiou por circunscrever uma realidade social. Mas, os filmes que melhor conseguiram ler – e dar a ver – a região na sua complexidade são, afinal e invariavelmente, os que escolheram a via do discurso mítico, o que oscila entre a história material e a resistência do imaginário. Há três lugares específicos reconhecidos por este cinema para o trânsito entre o mundo tangível e o onírico: a ponte (Margens de Pedro Sena Nunes é, acima de tudo, uma reflexão sobre a passagem do mundo dos vivos ao mundo dos mortos, ideia ancestralmente associada à travessia de um rio; e em Trás-os-Montes, duas crianças perguntam-se, no regresso de um passeio à outra margem do rio: “Como é que dois rapazes como nós podem ser os próprios antepassados? O passeio terá demorado algumas centenas de anos!”), a fogueira (em roda da qual, ao serão, se contavam histórias) e a cama (onde as mães recitam aos filhos os contos que
se confundirão com os sonhos). Estes lugares são frequentemente visitados neste cinema e convocam o jogo tensivo entre o mundo palpável e a narrativa arcaizante, em que se constroem os filmes mais perscrutadores de Trás-os-Montes.
A objectividade metodológica que procura localizar fisicamente a história (pelo discurso dos habitantes locais; pelo registo das actividades tradicionais em vias de desaparecimento; pela descrição mais ou menos exaustiva das paisagens) intercala com o exercício de reinterpretação de um universo mitológico irrigado por lendas populares e rituais pagãos. Creio, com Jean Rouch, que será partindo da exploração objectiva da ficção (dos mitos ancestrais como das representações contemporâneas, especulando as inter-relações entre os diferentes mecanismos de encenação) e na revelação dos meios concretos da produção cinematográfica, que poderemos tocar a centelha do real.
A escolha, de vários realizadores, em fazer encarnar as personagens de ficção por habitantes locais, radicaliza a fricção entre a verosimilhança e o fantasioso. Quem é mais estrangeiro? Os actores-amadores face à fabricação do cinema ou as equipas de rodagem no reino de Trás-os-Montes? Os representantes óbvios desse trabalho na proximidade (e da redescoberta de sentidos lógicos na experiência do extraordinário) são Reis/Cordeiro e João César Monteiro. Aí, o cinema procura e expõe-se na frágil estranheza de se fazer em Trás-os-Montes.
Mas há outros exercícios capazes de adensar a trama em que se mostra Trás-os-Montes. A sequência final de Matar Saudades faz, demoradamente, surgir na paisagem (emoldurada por duas grandes árvores, quais limites de tela de projecção) um desfile do «Auto da Paixão» que cita Acto da Primavera de Manoel de Oliveira.
Ou, ainda, a sequência da homilia, registada por António Campos, em que o padre de Rio de Onor homenageia o trabalho de Jorge Dias e, sem compreender o que há de representação histórica num texto etnográfico (lamenta que, com a progressiva urbanização da aldeia, o livro “já não corresponde à verdade”) ou, pelo contrário, fazendo dela instrumento persuasor, pede à população que retome as tradições, nomeadamente as fixadas naquele estudo, concluindo: “Procurai respeitar e viver a obra do Dr. Jorge Dias”. Campos sabe que só no cruzamento entre as várias representações – o texto científico, o ritual litúrgico e o cinema – será possível “falarmos” de Rio de Onor.
Somos, pois, avisados de que antes de haver paisagem há o olhar sobre a paisagem. Mnemónico e cultural. Isto é: vemos, invariavelmente, através dos olhos de quem observou o mesmo antes de nós e o deu a ver.
Estes filmes tratam, todos, da encenação de uma paisagem. O reino maravilhoso não existe, nunca existiu, mas para ver Trás-os-Montes, há que começar por interrogar o que há de maravilhado no nosso olhar – e no olhar deste cinema –, neste reino. Mas também o que há de maravilhoso neste cinema.


João Sousa Cardoso

[1] “Estas casas [as novas] não aparecem. Aparecem estas casas todas, mais velhotas. Se foi para dar uma imagem de que Vilarinho teria de ser pago a um preço irrisório, para que as pessoas valorizassem aquilo muito mal... Eu não posso dizer que foi por essa razão. Agora, que as coisas de Vilarinho não aparecem... Não.”, testemunho de uma antiga habitante, corroborado por outros aldeões presentes, registado em Livro do Movimento 2002-2005 de Daniela Pães Leão e João Sousa Cardoso, Porto, 2005.

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