sexta-feira, 17 de agosto de 2007

QUALQUER PORTUGUÊS MÉDIO

Qualquer português médio (o que quer que isso seja...), homem de bem ou de mal, oriundo dos círculos de alta pressão, da massa dita anónima ou da ralé, partilha com os seus pares e ímpares uma noção que 33 anos de democracia representativa não conseguiram invalidar: Lisboa é Portugal, o resto é paisagem. À luz deste lugar comum torna-se porventura mais fácil entender o cinema que tem passado por Trás-os-Montes: foi a própria interioridade das terras transmontanas que, num certo sentido, legitimou a escolha de alguns cineastas os quais, por razões diversas e em contextos não menos distintos, plantaram o seu tripé, como cavalete, diante de sítios e seres inscritos nesse território «encantado».
Recolher imagens e sons, fabricar cenas e histórias num local arredado tanto do litoral quanto da capital pôde ser entendido como um gesto de busca do miolo da nossa identidade, como uma pesquisa acerca das raízes. No entanto, poucos foram os cineastas capazes de trazer de Trás-os-Montes um conhecimento maior do que aquele de que o simples turista se autoriza a gabar-se. Significa isto que Trás-os-Montes serviu sobretudo de décor, nos casos mais sérios de paisagem exterior e interior, estando evidentemente por pensar e fazer um cinema que interrogue o presente e o passado, os reais e os imaginários, os escassos privilégios e os inúmeros handicaps que na província transmontana geram inquietudes ou se encontram em conflito, ora gritante ora subterrâneo.
Ainda assim, não deixa de ser verdade que a passagem da câmara por lugares ainda pouco moldados pela força trituradora da máquina audiovisual teve consequências notórias. Além do exemplo extremo do renascimento da festa dos rapazes – que se ficou a dever a uma reconstituição do ritual, na aldeia de Varge, ocorrida a pedido da cineasta Noémia Delgado – há que enfatizar e saudar a importância da obra de Reis/Cordeiro, cuja envergadura artística, não obstante a relativa confidencialidade dos filmes de sua autoria, catapultou Trás-os-Montes para o patamar de território venerado e mítico aos olhos dos cinéfilos portugueses e não só. Mais do que qualquer outro décor, Trás-os-Montes haveria pois de ter parecido apetecível, coisa que não veio exactamente a acontecer, por variadíssimas razões, as menores das quais não serão as dificuldades de acolhimento in loco (às quais se acrescentavam, até aos anos 90, as dificuldades de circulação) e a ausência de políticas regionais consistentes.
Se é verdade que cineastas como Reis/Cordeiro, César Monteiro ou Sena Nunes tiveram a sapiência de colher em Trás-os-Montes os sinais suficientes para construir reflexões que roçam a interrogação metafísica, as grandes questões, de toda a sorte, que se colocam em zonas desertificadas e economicamente sinistradas como o “para lá do Marão” não têm interessado os cineastas de alhures, nem inspirado desejos de cinema aos autóctones. Tanto quanto sabemos, Sabores continua a ser o único filme feito em Trás-os-Montes que levanta a lebre do devir da paisagem e dos seus guardiães, da possibilidade de fazer coexistir vários modelos de crescimento, da especificidade das janelas mais a norte dos países do sul, etc... Por outro lado, os obstáculos naturais, a dureza climática, a religiosidade disseminada no quotidiano, a sobrevivência de mitos ancestrais e outros elementos que adensam o lugar, no sentido lato, poderiam ter servido de alavanca a um sem número de filmes num país em que a maioria dos citadinos pertencem a famílias rurais recentemente exiladas. Se ainda hoje os transmontanos concebem o luxo de cultivar centeio pelo mero prazer de ter melhor pão, qual o motivo pelo qual se prescindiu do luxo das imagens-tempo, essas mesmas que, às vezes, conseguem remar contra a maré do esquecimento?
Uma leitura aturada do visível, para o lado do documentário ou para as bandas da ficção – sabendo-se que as fronteiras entre os géneros, a existirem, são ténues, e que qualquer ficção documenta como todo o documentário ficciona – traria forçosamente a lume os crimes políticos que, ao longo da ditadura, não apenas comprometeram seriamente as actividades humanas nessa parte do Portugal profundo (embora o Estado Novo lá tenha ido pescar figuras, importantes mas amnésicas, do regime) como obrigaram uma grossa fatia da população a migrar – para o litoral, para Franças e Germânias, para África, para a América Latina. Uma escuta consequente dos relatos de vida de quem ainda tem para contar as histórias dos que, em regra, menos contaram, traria fatalmente à baila o desajuste entre as aspirações das comunidades locais e o cinismo das políticas governamentais, bem como o quadro negro de uma globalização que, longe de atenuar as disparidades ao nível das expectativas, mais não faz do que cavar o fosso que separa o mundo pós-urbano das ruínas do mundo rural, a despeito de uma normalização tendente a desfigurar todos os sonhos e todas as realidades.
Numa era em que a reescrita da História é desígnio de quem preconiza o pensamento único, resta-nos sonhar com a explosão improvável mas necessária, de cinemas e circuitos de difusão que partam de dentro para dentro e de dentro para fora, de cinemas a contra-corrente desta corrida para o fim do mundo que tanto parece fascinar os pós-neo e os neo-pós. Para que o Eu da Europa não venha a ser puro álibi da transformação dos lugares em espaços cénicos e das pessoas em figurantes sem texto, nem tempo, nem temperamento.


Regina Guimarães e Saguenail

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