sexta-feira, 17 de agosto de 2007

APRESENTAÇÃO

Que cinema se fez em Trás-os-Montes e que Trás-os-Montes se fez nesse cinema?
Estes são os dois termos de uma mesma questão e as duas faces de uma mesma imagem, sem frente nem avesso. Responder à pergunta é ler a imagem cinematográfica à transparência da sua construção e à contra-luz do seu devir histórico, à vista de um confronto entre duas representações: uma que se mostra, a outra que se vê. É nessa descoincidência radical, em que se formam e desenvolvem todas as imagens, que é possível perceber a realidade.
Sendo muitos os filmes que têm por objecto ou pano de fundo a região transmontana e acreditando que a restituição dessas imagens, na maioria das vezes tão próximas quanto desconhecidas, ao contexto onde foram realizadas pode contribuir para uma redefinição dos lugares e das representações, A Reposição é um seminário aberto que pretende dar a ver e a discutir, in loco, uma selecção dos diferentes olhares que o cinema português dirigiu a Trás-os-Montes.

Em resposta a uma grande diversidade de propósitos (éticos, estéticos, políticos, sociológicos) e de pontos de vista (ficcionais, documentais ou combinado os dois registos), a multiplicidade de abordagens cinematográficas de Trás-os-Montes unifica-se em torno de uma gama pouco discrepante de temáticas e de concepções prévias. Reiteradas com frequência pelos cineastas, que encontraram na região e nos seus traços específicos elementos privilegiados para falar do país, ideias como o isolamento, o afastamento relativamente à capital e aos centros urbanos do litoral, associadas ao dramatismo da paisagem, à negação de todos os indícios da modernidade e à prevalência de modelos de organização social e de tradições ancestrais, contribuíram para forjar uma imagem pitoresca e pouco realista da região transmontana, convertida em lugar mítico, fora do espaço, do tempo e da história, pronto a acolher todo o tipo de projecções. Deste modo, enquanto alguns cineastas encontram em Trás-os-Montes o cenário ideal para, de modo fantasioso, filmar lendas e contos tradicionais (convertidos, na maioria das vezes, em comentário político), outros, desenvolvendo aproximações pretensamente mais objectivas, concordantes com os princípios teóricos da “antropologia visual”, vêem na prevalência de práticas comunitárias nalgumas aldeias, o molde e a justificação de um “comunismo natural”. Servindo as mais variadas perspectivas e discursos, identificada como território “virgem” e “original” – figura acabada de uma matriz cultural –, a região de Trás-os-Montes, torna-se, a um tempo, palco de algumas das mais radicais experiências cinematográficas do Novo Cinema Português e contraponto fundamental para repensar as assimetrias económicas entre o Norte e o Sul, a falência da reforma agrária e a crescente desertificação do interior do país.
Por isso, sendo certo que a paisagem natural e humana de Trás-os-Montes serve de pano de fundo a algumas das obras fundamentais da história do cinema português, A Reposição pretende proporcionar uma revisão crítica do cinema “transmontano” através do confronto de Trás-os-Montes com a sua imagem cinematográfica. Trata-se, pois, de reconduzir as imagens à sua origem e de levar o cinema onde este raramente chega.

A mostra terá lugar em plena região transmontana, na Casa da Cultura de Vimioso (Distrito de Bragança), de 30 de Agosto a 2 de Setembro.
Pela diversidade de abordagens cinematográficas de Trás-os-Montes, pelo confronto desses filmes com os locais onde foram realizados e contando com a presença de alguns dos realizadores, esperamos que A Reposição possa promover um espaço de abertura, de descoberta, de troca e de debate.

Por altura da mostra será ainda editado um livro com textos de reflexão sobre o tema e informação relativa aos filmes programados.

A entrada é gratuita.

O seminário está aberto a todas as participações.


Alojamento gratuito
A Câmara Municipal de Vimioso acolhe todos os participantes disponibilizando-lhes, para “acampar” gratuitamente, as instalações do recém-inaugurado Pavilhão Multiusos (espaço amplo com balneários e água quente).



Para outras informações:

António Preto

antónio.m.preto@gmail.com

1 comentário:

VV disse...

Há quase 30 anos (1979), então ainda estudante, foi-me solicitado pela Eunícia Salgadinho, funcionária do Cineclube do Porto (que conhecia o meu gosto por maquinetas, e que eu sabia operar projectores), para passar uma semana em Vila Flor, Moncorvo e Mirandela, na companhia de António Modesto Navarro, que, no âmbito da Associação do Nordeste Transmontano, organizara uma Mostra de Cinema sobre Trás-os-Montes.
Usávamos máquinas de 16 mm e projectávamos em sítios estranhos, como o Pavilhão do Liceu de Moncorvo (repleto de pessoas encasacadas devido ao frio intenso).
Fui de camioneta de Vila Flor para Moncorvo, transportando a pesada máquina e vestindo uma samarra e luvas emprestadas pelo Tino, e almoçava sandes e "carbo-sidral", que o subsídio da Secretaria de Estado da Cultura não dava para mais...
Com a febre que apanhei, as mãos tremiam-me tanto que deixei cair a lâmpada da máquina, que era transportada à parte justamente para... não partir!.
Foi uma experiência fantástica.
Tive o privilégio de conhecer o pai dos Navarro, antigo ferrador, já bastante idoso.
Lembro-me da presença de Noémia Delgado, e de outro realizador (Fonseca e Costa? não recordo bem...), do crítico Matos Lopes do DL?), de Tété (a mulher-palhaço) e dos ingleses "One Penny Show", um "circo" de 3 artistas deslocando-se em duas carrinhas adaptadas, que compraram dois fogões a lenha para levar para Inglaterra...
Ou da sessão numa aldeia, em que ninguém entrou no salão sem que, primeiro, o padre o fizesse...
Ou o empregado do café onde tomava o pequeno-almoço, em Vila Flor, que, no filme "Moncorvo", aparecia a jogar a "vermelhinha" num guarda-chuva, durante uma feira...
Recordo o regresso de França, para nos ajudar, de Tino Navarro, irmão do António, e da casa dele, onde fiquei alojado junto com dois outros projeccionistas vindos de Lisboa - também por carolice.
Quero homenagear o Modesto Navarro por aquela iniciativa, e também os promotores desta nova aventura.
E quero igualmente homenagear os transmontanos, em especial os que figuram naqueles filmes: gente firme, correcta, por vezes ingénua, mas sempre hospitaleira.